4.3.14

Os Fenianos e Aquilino Ribeiro


Carnaval!

Carnaval!

Como bons portuenses é a época em que nos relembramos do Carnaval dos Fenianos.

Mas a acção, a longa acção deste clube da cidade não se resumia somente aos cortejos e bailes que tinham lugar nesta época do ano. Os Fenianos sempre tiveram um papel importante na divulgação das Artes e das Letras. É sempre bom relembrar ou divulgar que o grupo de pessoas que fundariam o T E P (Teatro Experimental do Porto) começaram por terem abrigo nos seus locais. 

Assim resolvi divulgar o texto de uma conferência de Aquilino Ribeiro (Sernancelhe, Carregal, 13 de Setembro de 1885 — Lisboa, 27 de Maio de 1963)em comemorações do seu cinquentenário en tanto que escritor, na sede do Clube em 1963.


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DISCURSO PARA O BANQUETE NO CLUB DOS FENIANOS



Estou profundamente sensibilizado com a homenagem que os primeiros representantes desta nobre cidade do Porto se dignaram prestar ao obreiro das letras que há mais de meio século vem batendo o seu tambor de Waterloo – Waterloo – repetirão V. Exas. interrogativamente. Pois que é a vida, direi eu, com a caducidade de tudo e o inevitável baixar do pano, senão uma intérmina e perpétua batalha perdida? Com honra ou sem ela, eis o dilema que se pospõe à nossa condição efémera.
Agora vendo-me rodeado de senhores de tão vincante personalidade, por tudo isto ou aquilo, em minha consciência me pergunto se mereço este desvanecedor Domingo de Palmas. Bem sei que está presente o autor dumas dúzias de livros; o cultor probo da língua; o literateiro dum vasto guinhol. Sim, ao meu activo contam esses estirados actos de boa intenção. Todavia deixem-me dizer-lhes sem falsa modéstia, que acima de tudo, dos dotes inatos do entendimento, é o esforço e a constância no esforço que fazem, tanto na prática das letras como em qualquer outro mister, o artífice consumado. À face dessa obra recôndita e misteriosa da vontade, o meu artesanato não vale mais que o do humilde tecelão de tapetes de Arras, do entalhador de madeira de capela-mor, ou do oleiro, para não ir mais longe, que tira de olho as linhas de beleza da sua cerâmica. O cérebro é uma admirável máquina electrónica e torna quem assim o quer, mas quer a valer, num compositor, num poeta, digamos mesmo num homem rico e de mando entre os homens. A questão é que os neurões se vão condicionando e ordenando na cadeia psíquica que conduz a determinado objectivo profissional.
Bem certo que, tratando-se de escritores, a vontade de realizar opera sobre um teclado admirável em que se acrisolou o trabalho continuo e acepilhante das gerações através das vicissitudes dos tempos. Qualquer tecla é uma maravilha de engenho e subtileza. Em cada uma delas se depositou, concentrada e afinada mediante infinitos factores do mundo real, uma experiência específica. Por outra é o seu mais justo expoente. Assim sucede que a palavra pode caracterizar uma natureza de indivíduo; o seu estado de alma; os seus gestos mais fugazes: uma atitude; uma emoção tão bem como um impressionista pinta uma paisagem.
A língua, vista nas suas flexões e infinitas modalidades prosódicas e sintáxicas, como raízes, desinências, sufixos e prefixos, etc. etc. retrata o povo que a fala. Basta fazer-lhe a análise espectral. Ouça-se o latim e compreende-se o peremptório, a soberba, o espírito construtivo e sem reticências de Roma. Na língua, com efeito, expressa-se tanto a actividade subjectiva como a forma como se comportou na luta pela vida determinado povo. O português, o idioma que a V. Exas. aprouve me tomassem para símbolo de celebração, visto nos grandes cultores, Camões, Vieira, Eça, Camilo, é uma polifonia magistral, e estou em crer que, sob o aspecto de ressonância das grandes emoções, a cólera, o ódio, a raiva, o amor, a saudade, valha os idiomas mais consagrados do mundo. Além disto a língua é a interpretação de um modo de viver e o somatório de fórmulas do próprio viver. Que existência mais atribulada, mais difícil, mais aventurosa e arremessada a todo o quadrante dos recursos que a da família portuguesa, agarrada a um fragão árido, apenas tendo recebido a graça de o inundar o sol e ter aberto o lado do mar? Estou, por isso em crer que poucas línguas terão a riqueza léxica, fruto de uma psicologia de gente pobre e danada, se quiserem dum instinto, como possui a nossa. Reparem como cada vocábulo, nada mais que com a rabugem de aumentativos e diminutivos, constitui uma gama de sensações ou evocações apenas comparável a uma arcada de violino.
O francês, o alemão serão mais profundos em racionalidade e poder de síntese, mas para traduzir o sentimento, o desespero humano, a pequenez de mortais, a angustia de ser e o pessimismo em face da muralha de bronze, atrás da qual se esconde o enigma da existência e a inutilidade, pelo menos aparentemente, da nossa freima terrestre, não haverá porventura segunda, excepção feita das línguas orientais, em que para nós tudo é selava e mistério. A nossa língua porém, de ouvido á escuta ao imediatamente humano, cultivando acima de tudo a primitividade e transes vitais do incola planetário, acabou por tornar-se também numa excelente tabuada psíquica. Ora eu creio que é, em tanto que exercendo-se na passagem do sensorial para o intelectivo, que a minha obra deverá ser encarada e analisada.
Como já tive ocasião de notar, o homem é produto de si próprio. Claro que este produto de si próprio implica uma predestinação. Digamos desde já predestinação fisiológica, para não criar confusões mentais.Com a aplicação vem a aptitude e, vou mais longe, o entendimento e a percepção adequada das coisas. Não diz o ditado que en forgeant on devient forgeron? De modo que ao fim e ao cabo – e proclamo-o com exaltação antropológica – a obra do escritor mais requintado, dum Gide, dum Huxley, não vale mais, em matéria de quilates que a do estaturário rude que modelou as gorgonas de Notre Dame. Toda a questão de mérito vai no género da tarefa e esta na direcção que se lhe imprimiu. Pode o estatuário servir-se de barro ou pedra, o escritor da luz interior que detém e é património comum acumulado e substanciado em sons ou sinais. E não tenham como exagero empregar o termo luz. Certos livros, a Ilíada, a Ressurreição, o Puits de Sainte Claire são verdadeiras teias de luz que nem pedida ao espectro ou ao zodíaco, consoante.
V. Exas. rendem pois o seu preito a um artífice que apenas encaneceu no seu tear de estopa grosseira e raro de cambraia fina. Devo advertir que nesta factura se vê porventura o homem do Norte, da Meseta e se não é atrevimento, como tal adstrito à latitude do Porto, formado aos ventos que sopram da barra de Leixões, e às auras que levavam da Praça de D. Pedro e dos gabinetes e salas de conferências, as vozes de Guerra Junqueiro, de Bruno, de Basílio Teles e doutros. Quer queiram, quer não, sou e me confesso sufragâneo do clima psicológico desta terra que possui o privilégio da liberdade e do labor. E honra seja dos portuenses. Nestes dois fulcros reside a expressa condição do progresso. O Porto, por todo o fim do século XIX e princípios do XX, foi a aula e centro de irradiação das ideias democráticas que vieram a predominar e impor-se em Portugal. Nela tirei o diploma que venho ostentando nos meus livros e pela vida fora, que já não é breve. E, de passagem seja-me permitido observar que o Porto não pode cumprir a sua missão geopolítica de capital do hinterland, na totalidade, mormente para aquela parte das serras onde me criei e fiz homem. As linhas de comunicação, sejam estradas, sejam caminhos-de-ferro, inflectem invariavelmente para Sul. Como se deixou esta cidade esbulhar do seu papel de empório para estas regiões que deviam estar no orbe da sua influência? Pois a mala-posta, que me havia de arrancar aos meus barrocais, metia a Sul. Os caminhos velhos dos almocreves e regatões, que trouxeram o juiz de Barrelas a dar conta à Relação do Porto da sua sentença, mais anfigurica que os enigmas de Édipo, esses continuaram fiéis à operosa cidade marítima. Mas o Malhadinhas foi o derradeiro almocreve a tanger o macho das terras do Paiva para terras do Vouga ou do Douro.
Eu fui vitima desta descentração da orgânica rodoviária e administrativa, e em vez de vir fazer o meu aprendizado de pessoa útil no Porto, cidade do esforço, da visão sem aranheiros, da aversão ao compósito e à hipocrisia, deixei-me conduzir pelas vias divergentes para a corte, como diziam os espanhóis da cidade capital do reino, ao tempo dos reis, da traficância politica, e dos marialvas. A reacção do montanhês a este meio de falsa civilização e entendimento furta-cores da vida, aferida e ratificada com meia dúzia de anos de Paris, gerou a minha obra.
Já vou longe nas minhas divagações supérfluas para a magnanimidade e o bom sentido social que os homens do Porto põem nas suas demonstrações de bizarria e arte de acolher as pessoas que lhe caem no agrado. Confesso-me exalçado na minha caneta de vintém e serei o arauto perante os meus colegas de Lisboa e do resto de Portugal que esta cidade com os seus Fenianos, o seu benemérito Ateneu, as várias sociedades de cultura e recreio, além de baluarte das liberdades, que sempre defendeu a peito rasgado, desdobra uma rede inconsútil de carinho e simpatia que nos cativa para todo o sempre-»


A conferência de Aquilino Ribeiro no Clube dos Fenianos Portuenses terá sido o seu último acto público, pouco antes da sua morte.

Este texto foi "transcrito para letra de forma" pelo seu filho Aquilino Ribeiro Machado e facultado para publicação pela Confraria Aquiliana.

Hoje, alguns anos depois de me ter chegado às mãos, aqui fica para memória futura.

Mais uma vez, tento saber em que data teve lugar esta conferência. Será que alguém me irá responder?

Sobre o escritor podem consultar o artigo já publicado aqui na Alameda Aquilino Ribeiro .

Com os meus agradecimentos à:

Confraria Aquiliniana
Avenida da Liberdade, n.º 60
Vila Nova do Campo
3510 - 651 VISEU


confraria.aquiliniana@gmail

2 comentários:

Mafalda disse...

Em 1963

T D disse...

Obrigado S. J eu já sabia que tinha sido em 1963 só desejava saber o mês, e se possível o mês. Mas isso talvez seja pedir demais.
:)