23.11.08

Da Boavista à Trindade

Aqueles que gostam de ler histórias da História do Porto não podem deixar de percorrer, com alguma frequência, os alfarrabistas portuenses que os há espalhados por muitas locais da centro tradicional da cidade. É que, não o fazendo, arriscam-se a perder algumas preciosidades. Ora aconteceu que, há dias, ao apreciar a excelente série de obras exibidas na montra da Candelabro, ali, na Rua da Conceição, vislumbrei um pequeno opúsculo de 39 páginas sob o título "O prolongamento da Linha Férrea da Boavista à Trindade" . Datado de 1930 e dado à estampa na Tipografia Sequeira, Lda., a pequena obra foi editada pelos advogados Alfredo de Morais de Almeida e José Gualberto de Sá Carneiro, este último pai do malogrado Francisco de Sá Carneiro que foi um dos fundadores do PPD/PSD e uma das personalidades políticas mais marcantes da sociedade portuguesa post 25 de Abril.

Mas, ao fim e ao cabo, de que trata o referido opúsculo ? Nem mais nem menos do que a tentativa da Companhia de Carris de Ferro do Porto - antecessora da que é hoje a STCP - de embargar judicialmente as obras que decorriam na Avenida da França para colocação das linhas férreas no sentido de trazer até à Trindade os comboios da Linha da Póvoa que, na época, ligava também a Famalicão, à Trofa, a Guimarães e a Fafe. Os dois ilustres causídicos defenderam na barra dos tribunais a causa da então Companhia dos Caminhos de Ferro do Norte de Portugal - a dona da obra - e acabaram por vencer o pleito judicial.

Em 1927, esta última empresa, que posteriormente veio a ser integrada na CP(Caminhos de Ferro Portugueses), celebrou com o governo um contrato em que ficou obrigada a construir o prolongamento da linha férrea desde a estação da Boavista até à Trindade, um acto que foi calorosamente acolhido pela Câmara do Porto, a ponto dela se ter regozijado publicamente "por tão útil obra". O projecto ficou pronto e aprovado no final de 1928 e a 8 de Janeiro seguinte era publicado na folha oficial não apenas o projecto mas, igualmente, a declaração de utilidade pública urgente para expropriação dos terrenos necessários para o empreendimento. Meses depois, enquanto era aberto o túnel da Trindade, a Companhia decidiu instalar os carris desde a Estação da Boavista, atravessando, portanto, a Avenida da França.

Mas a Companhia de Carris de Ferro do Porto, "que se julga - diz-se na tal contraminuta de agravo - única e absoluta dona e senhora das ruas e praças do Porto, como um verdadeiro Estado dentro do Estado, lembrou-se de fazer embargar extra-judicialmente essas obras; e em seguida foi ao Juízo da 4ª Vara Cível requerer a ratificação desse pseudo embargo". Alegava que a Avenida da França estava incluída no âmbito da sua concessão, inclusivé chamando a atenção para um desenho que incluiu no processo referente à construção de uma linha ao longo daquela avenida. Nunca chegou a ser realidade. Os advogados dos "Caminhos de Ferro de Portugal" bateram-se pela sua dama e aquela acabou por poder, já com o beneplácito judicial, atravessar com os seus carris a Avenida da França. O comboio acabou por apitar na Trindade no início dos anos 40 numa gare um tanto ou quanto mal amanhada que acabou por ser definitiva até meados dos anos 90, altura em que os comboios foram substituídos pelo metro que cruza o local com duas linhas, uma delas subterrânea.

A Avenida de França conheceu, por seu turno, alterações de vulto durante o século XX. Teve uma passagem de nível que nos anos 70 foi substituída por uma passagem inferior daquela artéria portuense em relação às linhas de caminho de ferro; depois, já nos anos 90, quando da instalação do metro, foi este que foi enterrado em relação às faixas de rodagem da avenida. Ao tempo que isto já vai...

Publicado no Jornal de Notícias


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