5.3.08

O sítio por onde corria o antigo rio de Liceiras


"Apetecia-me começar a crónica deste jeito " Ainda se lembra?... Era no Porto e num local concorrido?". Este foi o título de uma das mais interessantes rubricas de "O Tripeiro", dos idos de cinquenta, quando a revista era dirigida pelo historiador Artur de Magalhães Basto. Publicava-se uma fotografia de um determinado sítio do Porto, antigo ou desaparecido, e desafiavam-se os leitores a identificarem o local. As respostas revelavam, quase sempre, aspectos históricos, facetas e factos relacionados com o sítio em causa, até aí desconhecidos. Era, por isso, uma rubrica de grande utilidade e muito enriquecedora para a história da cidade.

Ocorreu-me tudo isto ao olhar a fotografia que ilustra este trabalho. Mostra-nos o trecho da Rua de Camões, junto à Trindade, e parte da Rua de Gonçalo Cristóvão, antes da existência do viaduto. Trata-se de uma fotografia relativamente recente. Dos finais dos anos cinquenta. Mas de difícil identificação, julgo eu, para as gerações mais novas - tantas e tão profundas foram as alterações, num relativo curto espaço de tempo.

A Rua de Camões, aberta em 1838, foi rasgada, em parte, ao longo de uma propriedade que pertencia ao fidalgo do Bonjardim, o célebre Gonçalo Cristóvão. Com a sua abertura cobriu-se o rio de Liceiras que, por aquele tempo, corria a céu aberto junto da rua com a mesma designação e que as mulheres da vizinhança utilizavam como lavadouro público.

O topónimo Liceiras é muito antigo. Segundo refere Cunha e Freitas, na sua "Toponímia Portuense", vem referido numa doação de 1457 e aparece posteriormente mencionado como aldeia em documentos de 1662 e 1724. A João Carneiro, um dos mais ricos e influentes cidadãos do Porto do seu tempo, pertencia, no século XV, o Campo de Liceiras. Ao rio de Liceiras há referências em registos paroquiais de Santo Ildefonso, nos anos de 1783 e 1806. O topónimo subsiste, na actualidade, na Travessa de Liceiras que em tempos mais recuados se chamou Travessa da Sampaia.

A abertura da Rua de Camões obrigou, digamos assim, à cobertura do rio de Liceiras, que desapareceu, deixando de servir de lavadouro e dando origem a um amplo logradouro a que se deu o nome de Largo de Camões, onde, durante muitos anos, se realizou uma feira de carneiros.

No terreno onde ainda decorre a construção da estação de metro da Trindade, localizou-se, em tempos idos, o manancial de Camões. Originalmente pertencia à quinta de Gonçalo Cristóvão mas a Câmara comprou-o, a fim de utilizar a sua água para o abastecimento público. A sua água era utilizada pelo Hospital da Ordem da Trindade, abastecia o chafariz do antigo Largo do Laranjal, actual Praça da Trindade; e as fontes da Rua de Sá da Bandeira, que ficava na esquina com a Rua de Sampaio Bruno; do pátio do desaparecido edifício onde funcionou a Câmara, na Praça da Liberdade; e o chafariz do Largo de S. Bento das Freiras, actual Praça de Almeida Garrett.

Junto do manancial de Camões também funcionou, durante muitos anos, o Horto Municipal. Desapareceu quando, em 1938, o caminho-de-ferro do Porto à Póvoa se estendeu da Boavista até à Trindade. Até ali, a via férrea tinha o seu términus na estação da Boavista, junto à Avenida da França. Já tudo desapareceu para dar lugar ao metro. Sinais dos novos tempos.

Um rio, uma rua, um Campo e uma Travessa de Liceiras

Rua de Cima do Muro da Trindade já desapareceu

Esta era a designação de uma artéria que já desapareceu. Uma rua estreita que corria comprimida entre o edifício da Ordem da Trindade e o chamado Monte da Douda e ligava a Rua de Camões à Praça da Trindade. Chama-se hoje Rua dos Heróis e Mártires da Angola. Por Monte da Douda era conhecida uma elevação de terreno (pedreiras da Trindade) que ficava entre as ruas do Almada, Alferes Malheiro e a desaparecida de Cima do Muro da Trindade. Na esquina da Rua do Alferes Malheiro com a Rua de Cima do Muro ficava o célebre Café Primavera, de cuja fachada ainda se vê parte na fotografia (em cima) que ilustra esta crónica. Era frequentado por jornalistas, boémios, tipógrafos, cocheiros, brasileiros endinheirados. Havia razão para esta heterogénea mas sempre abundante freguesia é que a gerência caprichava, como referiu certo cronista da época, em "fornecer aos seus habitués grandes atracções as quais se resumiam ao recrutamento de bailarinas espanholas que, ao som de um caquético piano exibiam por descuido zonas de plástica no rodopio do sapateado?"

Texto de Germano Silva publicado no Jornal de Notícias


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